A verdade essencial é este desconhecer que me habita.
A escuridão que antecede o dia é a minha companheira e se assemelha à minha própria solidão. Saber que esta solidão é minha maior força, me dá um enorme prazer. Quero ver a luz do dia nascendo rasgar o céu, como a confusão de sentimentos e emoções rasga meu ser. Sinto que algo novo e profundo pode nascer com este dia que se aproxima. Eu estou pronta. Tiro com calma, toda a roupa que cobre meu corpo, abro a janela e sento-me sobre a madeira fria, encolho as pernas e abraço-me a elas, aconchegando-me.
A escuridão me fez pensar na eternidade. Sei que o universo jamais começou, ele sempre existiu, de alguma forma, alguma maneira, sempre existiu, o ontem já havia sido um hoje, o amanhã também será um hoje, portanto, estou imersa na eternidade. Meus olhos procuram ao leste, no negro céu, a esperança da primeira luz. O vento penetra meu sentir, e traz a fria sensação de dor, meu corpo talvez esteja inventando esta dor a fim de torná-la interna, integrante do meu existir. Meu corpo ordena que eu saia desta janela em busca do que não quero. Resisto e penso – enquanto tiver perguntas e dúvidas, continuarei pensando, pensando muito, e questionando, e quem sabe até falando, com quem me quiser ouvir. Começo a entender que sei algumas coisas que estou vivendo, ou que virei a viver, ou mesmo que já vivi, mas não sei só por mim e para mim, no meu interno indevassável, sei porque vivo, e quem vive sabe. Porque tenho direito ao grito – grito – um grito mudo e íntimo, seguido de silêncio e uivar de vento. Tento fazer nascer a minha história, mas constato que minha história mais explícita tem segredos inconfessáveis. Passo a mão pelo meu corpo em um desejo de carícias, sinto a pele eriçada pelo frio e experimento a maciez da seda misturando-se aos primeiros ensejos da luz de um outro hoje. Talvez agora eu possa chegar à verdade, talvez a verdade seja este encontro particular e inexplicável. Naturalmente, vou sentindo-me tão interior e tão íntima que não existe agora nenhuma palavra que possa me definir. Tenho por princípio não mentir “quando penso”, mas é esta uma tarefa penosa. Às vezes sinto vontade de me enganar, mas neste momento quero viver minha vida incipiente, sem ilusões, aquela que respira fundo e bem no fundo. Quero entender quem sou.
Percebo que até agora caminhei, de fracasso em fracasso, de vitória em vitória, e me reduzi ao que sou, presa a um corpo que nem sempre me acompanha, que demonstra, tantas vezes, ter vontade própria e me deixa apenas migalhas para saciar minha fome absoluta. Existe a quem falte o delicado essencial, outros que o camuflam, o mesmo que sempre escondi, agora o encontro, e minha nudez é necessária, é como se eu ultrapassasse o último obstáculo que me separa de mim mesma. E, no esforço de não me enganar, concluo que estou incompleta.
Sempre vivi acreditando que toda negligência era, no fundo, deliberada, todo casual encontro previamente marcado por minhas vontades e ânsias. Toda humilhação, penitência. Todo fracasso, misteriosa vitória. Porque, secretamente, dentro de uma visão difusa de meu ser e de meu sentimento necessário da dor, sempre conheci a culpa. Então me redimia - a derrota me satisfazia, era um alento. E usava o flagelo, o castigo, como redenção. A derrota me satisfazia porque estava ligada a todos os fatos que foram, estavam ou seriam a causa de minhas emoções e deixavam à mostra minhas fraquezas. Este pensar me levou a criar uma teologia individual com a qual direcionei meus atos, e que, de alguma forma, revelava uma ordem secreta e prodigiosa que me aproximava da divindade. Penso aqui em meu maior defeito, a prepotência. Foi com ela que tentei me esconder da vida, foi ela que me fez manipular minhas próprias emoções e acreditar conseguir viver na superfície, sem mergulhar em sentimentos reais e que, vejo agora, sempre existiram. Foram essas as minhas escolhas. Escondi tanto, tanto, tanto, minhas dores e meus amores até acreditar-me incapaz de amar.
Quero pensar no amor. O amor que até hoje mostrei para mim e para os que estiveram por perto, com um sentimento de perdição em minhas palavras vulgares, em meus atos impensados, o que tornou-se um fato irreparável no passado. Esse sentimento incompreensível e negado sempre, solidificou emoções no campo físico. Foram esses os desacertos que me fizeram viver até hoje. Foi esta a grande crueldade que pratiquei comigo. Olho em volta, o hoje desvirgina o céu e é lindo, acontece ao meu redor o tempo todo, é a vida. Esta é a vida real. É a minha chance, minha oportunidade de viver o amor, primeiro por mim mesma, para que perca o medo e me dê o direito de sonhar e errar e “errar” em meus sonhos. Apagar para sempre a personagem criada na dureza do fio da lâmina, na indiferença, na superfície da matéria. Por que tanto medo do amor? Se ele sempre existiu, se vivi suas dores, decepções, fantasias, alegrias... Por que me neguei o direito de viver o amor, do que me defendia?
Talvez tivesse medo da ausência, acreditando ser a ausência sinônimo de falta. Compreendo que apenas o afeto torna o homem necessário, como eu quis ser e me fingi de tola e, mais uma vez, fingi não perceber outros que igualmente se fizeram de tolos. Recordo-me de antigos amores negados e que não posso revivê-los, descubro que não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim, e posso abraçá-la como abraço meu corpo, e a aconchego em meus braços e rio e falo palavras insensatas e belas, porque esta ausência é minha, ninguém me pode tirar. Meus antigos amores estão em mim agora, serão eternamente meus. E conheço a verdade, a verdade essencial é este desconhecer que me habita. Desconhecimento que me faz pensar, que me traz tantas dúvidas e conflitos. E mais uma vez me recordo de quando disse a alguém que o melhor amor é o de quem não espera ser amado. Naquele momento, todo o meu ser amava. Sei que amo, mesmo sem saber, mesmo sem dizer, porque amor é só sentimento e com amor não se paga, é dado de graça, é levado por este vento que canta, não tem definição em dicionários, não tem regulamentos. Amor não se troca, não se conjuga, ama-se porque se ama. Amor é amar a tudo, é amar a nada, e se fortalece apenas em si mesmo. Sinto que o amor é capaz de vencer a morte, por mais que se “morra” (e se mate) de amor. Amo a luz do hoje, amo a eternidade de todos esses hojes que vivi e neguei. Talvez seja o amor apenas um instante, um instante de sentimento, de conclusão, de lembrança, e vários outros instantes que não me lembro, ou não conheço, instantes sem razão. E neste instante, uma luz diferente pousou em minha pele, além da pele, nos músculos, nos nervos, no sangue, nos ossos, uma luz branca, vermelha, alaranjada, o céu, o infinito, girou em torno dos meus pensares feitos de sonhos e de ventos.
Descobri que tenho destino (ou salvação... ou já me salvei).
Vou vestir um vestido de seda azul.